segunda-feira, 24 de novembro de 2014

CECÍLIA MEIRELES - GUITARRA




GUITARRA

CECÍLIA MEIRELES

Punhal de prata já eras,
punhal de prata!
Nem foste tu que fizeste
a minha mão insensata.

Vi-te brilhar entre as pedras, 
punhal de prata!
- no cabo, flores abertas,
no gume, a medida exata,

a exata, a medida certa, 
punhal de prata, 
para atravessar-me o peito
com uma letra e uma data.

A maior pena que eu tenho, 
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber quem me mata.

OLEGÁRIO MARIANO - TRISTE CONTRASTE



TRISTE CONTRASTE

OLEGÁRIO MARIANO

Que saudade eu tenho da felicidade
Que vem da tua vida cancioneira!
Quem canta, mata o espinho da saudade,
Quem ama, sofre pela vida inteira...

Tu, cigarra, na tua ingenuidade,
Sonhas... Olha: a ilusão é passageira;
Dentro de cada olhar que o Sonho invade
Dorme sempre uma lágrima traiçoeira...

Cantando vives e eu penando vivo...
Quando tu cantas, desabrocha o dia,
Sem nuvens, neste olímpico esplendor.

Da voz que canta, o canto é um lenitivo:
Cantas a luz do Sol, - Sonho e Alegria - 
Eu canto a noite porque canto o Amor.

ANTONIO MIRANDA - TUAS ROUPAS


     

TUAS ROUPAS

ANTONIO MIRANDA

Tuas roupas no meu guarda-roupa têm  mais
intimidade do que os
nossos corpos na cama.

Uma certa fricção ou fruição macia e fria
de corpos prostrados
um roce, uma prega
do tira e põe do cabide.

Lado a lado são vestes nuas, tuas, cruas
com vestígios de
felicidade.

Talvez por contágio proximidade
sofreguidão, ressábio
presságio e ausência.

Roupas despidas de ti vazias, contidas
guardando as formas
de tua liberdade.

Um certo fetichismo de abandono
resquícios de suor
e perfume, dobras
quem sabe manchas.

Visito tuas roupas com as narinas
com os dedos solitários.

Superfícies aveludadas amarfanhadas, repassadas
revisitadas
meias e ceroulas
misturadas com sutiãs
e gravatas na gaveta
alicates, dedais
preservativos
em estado de inação
e promiscuidade.

Uma carência de botões bolsos, beiradas
desejos encardidos preteridos 
postergados.

     

FLORBELA ESPANCA - SER POETA




SER POETA

FLORBELA ESPANCA

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que o homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

CARLOS PENA FILHO - A SOLIDÃO E SUA PORTA


 

A SOLIDÃO E SUA PORTA
                               ( A Francisco Brennand)

CARLOS PENA FILHO

Quando mais nada resistir que valha
A pena de viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(Nem o torpor do sono que se espalha)

Quando pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
E até Deus em silêncio se afastar
Deixando-te sozinho na batalha

A arquitetar na sombra a despedida
Deste mundo que te foi contraditório
Lembra-te que afinal te resta a vida

Com tudo que é insolvente e provisório
E de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório.

 

OLEGÁRIO MARIANO - LENDA VENEZIANA


     

LENDA VENEZIANA

OLEGÁRIO MARIANO

Ele partiu e ela ficou, vaga, indecisa,
Braços volteando no ar, olhos presos no chão...
Sua vida passou efêmera e imprecisa
Na glória de viver de emoção em emoção.

Um lenço a lhe acenar como um trapo, na brisa,
É um golpe de punhal para o seu coração.
A saudade do olhar nunca mais cicatriza...
E ela perdeu do olhar toda a antiga expressão.

Dobram-lhe sinos na alma, e lento e regular,
Ela sente o rumor do remo na remada
E uma gôndola singra a água do seu olhar...

Todas as noites vem, sonâmbula e glacial,
E fica, noite a dentro, encostada à amurada,
Despetalando, ao luar, rosas sobre o canal.   

     

JOSÉ LUÍS PEIXOTO - ESTOU SOZINHO


     

ESTOU SOZINHO

JOSÉ LUÍS PEIXOTO

estou sozinho de olhos abertos para a escuridão, estou sozinho.
estou sozinho e nunca aprendi a estar sozinho. estou sozinho.
sinto falta de palavras. estou sozinho. estou sozinho.
sinto falta de uns olhos onde possa imaginar. estou sozinho.
sinto falta de mim em mim. estou sozinho, estou sozinho.
estou sozinho.

     

POESIAS PSICOGRAFADAS - CONFISSÃO


          

CONFISSÃO

AUGUSTO DOS ANJOS 
                       (Psicografia de Francisco Cândido Xavier)

Também eu, mísero espectro das dores
No escafandro das células cativas,
Não encontrei a luz das forças vivas,
Apesar de ingentíssimos labores.

Bem distante das causas positivas,
Na visão dos micróbios destruidores,
Senti somente angústias e estertores,
No turbilhão das sombras negativas.

Foi preciso "morrer" no campo inglório, 
Para encontrar esse laboratório
De beleza, verdade e transformismo!

A Ciência sincera é grande e augusta,
Mas só a Fé, na estrada eterna e justa,
Tem a chave do Céu, vencendo o abismo!...  

               

GREGÓRIO DE MATTOS - BUSCANDO A CRISTO




BUSCANDO A CRISTO

GREGÓRIO DE MATTOS

A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lágrimas abertos, 
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, p'ra chamar-me

A vós, lado patente, quero unir-me,
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.

domingo, 16 de novembro de 2014

ANTÓNIO RAMOS ROSA - ARTE POÉTICA




ARTE POÉTICA

ANTÓNIO RAMOS ROSA

Se o poema não serve para dar o nome às coisas
outro nome e ao seu silêncio outro silêncio,
se não serve para abrir o dia
em duas metades como dois dias resplandescentes
e para dizer o que cada um quer e precisa
ou o que a si mesmo nunca disse...

Se o poema não serve para que o amigo ou amiga
entrem nele como numa ampla esplanada
e se sentem a conversar longamente com um copo de vinho na mão
sobre as raízes do tempo ou o sabor da coragem
ou como tarda a chegar o tempo frio...

Se o poema não serve para tirar o sono a um canalha
ou ajudar a dormir um inocente
se é inútil para o desejo e o assombro, 
para a memória e para o esquecimento...

Se o poema não serve para tornar quem o lê
num fanático
que o poeta então se cale.

EGITO GONÇALVES - NÃO CRISPES O DESESPERO




NÃO CRISPES O DESESPERO

EGITO GONÇALVES

Não crispes o desespero
com os dedos, 
nada crepite
à flor da pele.

És um burgues altivo,
dominador, seguro;
mantém o retrato
bem iluminado.

Guarda o que sentes
entre as costelas,
nem o hálito enrugue
o vinco das calças, 
os álgidos rebuços.

Se tudo cai ao lado 
reforça a couraça...
peneiradas as dúvidas
fragmenta-as na cinza.

Que ninguém pressinta 
que os escombros são teus.

ANTÓNIO MANUEL PIRES CABRAL - NÃO ME MOSTRES NENHUM NORTE


          

NÃO ME MOSTRES NENHUM NORTE

ANTÓNIO MANUEL PIRES CABRAL

Não me mostres nenhum norte
nem estradas para lá:
são tudo embustes.

Mostra-me antes pedras, folhas mortas
de Outono atapetando o chão das matas,
voos de libelinha rasando o sol poente, 
cândidas risadas infantis.

Quero eu dizer: mostra-me coisas
daquelas que se corrompem sem pressa.

          

ANTONIO BRASILEIRO - A AREIA E O VENTO


   

A AREIA E O VENTO  

ANTONIO BRASILEIRO

A areia e o vento,
dois dos meus ancestrais:
um sem fim, outro sem data.

Meus passos me levam longe:
pela areia, onde não sei
- no vento, não sei quando.

A areia e o vento - 
dois motivos secretos
de viver, ir vivendo.

   

MANUEL BANDEIRA - AUTORRETRATO




AUTORRETRATO

MANUEL BANDEIRA 

Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano; 
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia 
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.

sábado, 8 de novembro de 2014

CARLOS PENA FILHO - TESTAMENTO DO HOMEM SENSATO


   

TESTAMENTO DO HOMEM SENSATO

CARLOS PENA FILHO

Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: "Ele era assim..."
Mas senta-te num banco de jardim, 
calmamente comendo chocolates.

Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que eu vivi, 
para ser em lembranças prolongada.

Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em voo se arremeda,

deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.

   

ALBERTO DA CUNHA MELO - CANTO DOS EMIGRANTES


                                

CANTO DOS EMIGRANTES

ALBERTO DA CUNHA MELO

Com seus pássaros
ou com a lembrança de seus pássaros,
com seus filhos
ou a lembrança de seus filhos,
com seu povo,
ou a lembrança de seu povo,
todos emigram.

De uma quadra a outra
do tempo,
de uma praia a outra
do Atlântico, 
de uma serra a outra
das cordilheiras, 
todos emigram.

Para o corpo de Berenice
ou o coração de Wall Street, 
para o último templo
ou a primeira dose de tóxico, 
para dentro de si
ou para todos, para sempre
todos emigram.

   

NEL CÂNDIDO - A PITANGUEIRA NO JARDIM

     

A PITANGUEIRA NO JARDIM

NEL CÂNDIDO

A pitangueira no jardim, 
que plantei há tanto tempo,
continua a não crescer.  
Plantei-a sonhando com seus frutos.
Plantei-a sonhando com sua sombra.
Mas uma persistente grama
enreda-se em sua raiz, 
atrofia-lhe a existência.
Penso que um dia
minha pitangueira morrerá
sem ser o que poderia ser.
A pitangueira no jardim
parece-se tanto comigo!

     

DONIZETE GALVÃO - ESCOICEADOS




ESCOICEADOS

DONIZETE GALVÃO

Meu pai e eu
nunca subimos
num alazão
que galopasse
ao vento.
Tínhamos
um burro
cinza malhado:
o Ligeiro.
Foi apanhado 
de um conhecido
por ninharia.
Chegou com fama 
de sistemático,
cheio de refugos.
De trote tão curto
que dava dor 
nas costelas.
De certa vez,
caímos do burro.
Meu pai e eu.
Eu e meu pai.
Embolados.
Joelhos esfolados
no pedregulho.
Levamos bons coices.
Meu pai e eu.
Os dois
nunca subimos 
na vida.

MANUEL BANDEIRA - MOMENTO NUM CAFÉ




MOMENTO NUM CAFÉ

MANUEL BANDEIRA

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente 
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e em finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.