sexta-feira, 29 de maio de 2015

JOSÉ LUIS PEIXOTO - MORRESTE-ME




MORRESTE-ME

JOSÉ LUIS PEIXOTO

Morreste-me. Mas a memória
guarda-me o teu cheiro,
as tuas mãos e o teu sorriso.
Estás em nós e eu estou em ti.
Eu jamais seria eu sem a tua presença
constante na minha vida.
Comparência que eu gostaria de poder prolongar.
Mantenho a memória acesa
com pedaços de imagens que me fazem sorrir.
Deixaste-te ficar em tudo... os teus movimentos,
o eclipse dos teus gestos.
E tudo isto é agora pouco para te conter.
Agora, és o rio e as margens e a nascente;
és o dia, e a tarde dentro do dia,
e o sol dentro da tarde;
és o mundo todo por seres a sua pele.

VALTER HUGO MÃE - O SUPER HOMEM


   

O SUPER HOMEM

VALTER HUGO MÃE

vesti o meu fato de 
super homem por baixo da 
roupa de todos os dias quando
fui ouvir o que o médico
tinha para dizer sobre a 
operação da minha 
mãe. eu morri mil vezes
quando a operaram, iam
partir-lhe o osso do peito e 
isso é tão avesso ao que 
espero dela. até digo às
crianças que não corram em seu
redor, tem quase setenta anos e
está cansada e não é bom que caia ou
sequer se aflija. partiram-lhe o 
osso do peito. fizeram-no porque
é assim que se faz, dizem, e eu,
secretamente com o meu fato de
super homem, supostamente
preparado para tudo, morri mil vezes
e, mesmo depois das boas palavras do 
médico, ando lento, tão atrasado
nas ressurreições.

   

MYRIAM FRAGA - A CASA




A CASA

MYRIAM FRAGA 

Pedra sobre pedra
Construí esta casa:
Tijolo, sonho e argila.
Custaram-me os alicerces
A metade da asa
Direita,
A outra metade,
Serviu de escora
Às traves que a sustentaram.

A asa esquerda perdeu-se
Na argamassa.

Esta casa, para fazer,
Levou-me anos
De solidão e fomes
Aplacadas.

Uma casa tão clara,
Aberta aos ventos,
E a cada dia sempre
Renovada.

Aqui plantei minha vida,
Nos esquadros
E soleira das portas.
Ancoradouro e barco,
Minha casa.

Daqui se ouvia o mar
E o canto das sereias,
Se nostálgico das janelas
O olhar se alongava.

Mas o perfume do incenso
Rolava nos altares, deuses lares,
E eu ficava e fui sempre 
A guardiã da casa.

Pássaro do abismo,
Mensageiro da desgraça,
Meus olhos marinheiros
Pressentiram o desastre.

Ventos do sul sopraram
Sobre a casa. Marés de março
Enormes, com suas vagas,
Submergiram e arrasaram
Da soleira aos telhados.

Olho de furacão,
Espiral de sargaços,
Conheci o sumidouro
A fúria da voragem.

Sobrevivente do escarcéu
Hoje, náufraga, na casa,
Sei que as paredes permanecem
Intactas, com suas marcas,
E novamente, aos poucos,
Com meus dedos quebrados,
Vou recompondo lentamente
A cumeeira arrasada.

NEL CÂNDIDO - NO MEU CADERNO ANTIGO


  

NO MEU CADERNO ANTIGO

NEL CÂNDIDO

No meu caderno antigo
encontro um poema
escrito quando jovem
e ainda uma alma pura.

Escorreu-me uma lágrima
com gosto de saudade
do jovem que eu fora,
dos sonhos que eu tinha.

Nas veredas da vida
foi-se a minha inocência,
também a esperança,
minh'alma endureci.  

A vida deu-me muito, 
além do que pedi, 
mas eu daria tudo
p'ra ser o que perdi.

 

AMADEU AMARAL - A VIDA


       

A VIDA

AMADEU AMARAL

Eis a Vida: seguir umas quimeras vagas, 
lançando a mão em sangue aos cardos e aos espinhos;
rolar no pó; gemer; deixar pelos caminhos
mil farrapos de carne e o sangue de mil chagas;

sorver o horrendo fel que anda em todos os vinhos, 
o veneno que jaz em todas as teriagas;
persistir, todavia, entre as chufas e as pragas
dos que vão, a ulular, por trilhos convizinhos;

chegar, enfim, exausto, ao fastígio da idade,
ver desfeito o jardim de encanto que sonhamos,
cair desfalecido e - supremo revés - 

olhando para trás, ver que a felicidade
ficou além, no vale, onde, espectros, passamos,
ficou além, na flor que calcamos aos pés...

       

DANTE MILANO - A PARTIDA




A PARTIDA

DANTE MILANO

Chego à amurada do cais,
Tomo um trago de tristeza.
Vem uma aura de beleza
Entontecer-me ainda mais.

Sinto um gosto de paixão
Dentro da boca amargosa.
Vem a morte deliciosa
Arrastar-me pela mão.

Vou seguindo sem olhar,
Vou andando sem rumor,
Ouvindo a vaga do mar
Bater na pedra da dor.

Vou andando sobre o mar,
Quem sabe onde irei parar?
Vou andando sem saber
Aonde me leva este amor.

domingo, 17 de maio de 2015

ANTONIO BRASILEIRO - ESTUDO 123


   

ESTUDO 123

ANTONIO BRASILEIRO


Morei na barriga de Deus.

Auscultei o centro do mundo, as pulsações

dos seres vivos, mortos e incriados.

Uma dor enorme encheu-me o peito:

ó saber-se deus e não ter forças!

(Residi no abdômen do divino

trinta anos). Pus meu ouvido no alfa

e no ômega: vi o princípio

e o fim vezes sem conta.

Tudo começa e morre e recomeça

e morre e recomeça. O incriado

vi; a estrela fútil - fósforo

que se acende num estádio de futebol.

(Porque morei no bucho do Perfeito).

E vi o universo morrer e vi seus ossos:

escuro no escuro maior, cão no silêncio.

A tudo vi e meditei e clamo:

ó saber-se divino e ser só homem!

   

AIDENOR AIRES - REFLEXÃO




AIDENOR AIRES

REFLEXÃO

Aprendi a caminhar o meu silêncio
e escutar atentamente o silêncio dos homens.

Aprendi a caminhar o meu silêncio
e ouvir atentamente o sonho dos meninos;
e lá no fundo do silêncio enorme
a dor humana geme como um sino.

AMADEU AMARAL - VOZ ÍNTIMA


    

VOZ ÍNTIMA

AMADEU AMARAL

Fecha-te, sofredor, na alva túnica ondeante
Dos sonhos! E caminha, e prossegue, embebido,
Muito embora, na dor de um fiel celebrante
De um estranho ritual desdenhado e esquecido!

Deixa ressoar em torno o bárbaro alarido,
Deixa que voe o pó da terra em torno... Adiante!
Vai tu só, calmo e bom, calmo e triste, envolvido
Nessa túnica ideal de sonhos, alvejante.

Sê,  nesta escuridão do mundo, o paradigma
De um desolado espectro, uma sombra, um enigma,
Perpassando sem ruído a caminho do Além.

E só deixes na terra uma reminiscência:
A de alguém que assistiu à luta da existência,
Triste e só, sem fazer nenhum mal a ninguém.

    

JOSÉ LUÍS PEIXOTO - OS INSTANTES


          

OS INSTANTES

José Luís Peixoto

devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgamos mais profundos, 
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis, 
transformam-se devagar em tempo.

por si só o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.

          

domingo, 3 de maio de 2015

ROSAS - ROBERTA MIRANDA

         
Rosas

Roberta Miranda

Todas as flores
que brotam nos campos 
tem o teu encanto
guardam teus segredos
Eu sei dos medos
tua rebeldia, tua fantasia
ilusão ou mágica

Você me olha, sorri acanhado
tudo é cor-de-rosa
Rosa da ilusão

E por onde você for
vou te buscar
E por onde eu passar
vou te mandar
o caminho que escolher
haverá rosas. Rosas

Todas as flores, mistura de cores
"Degradee" de azul, tom da ilusão
Todas as fugas
todos os caminhos
querendo ou não, volto a te encontrar
Você me olha, sorri acanhado
tudo é cor-de-rosa
Rosa da ilusão





(Ofereço essa música a minha querida mãezinha. 
De Hermínia para Ana)

         

OLEGÁRIO MARIANO - EVOCAÇÃO




EVOCAÇÃO

OLEGÁRIO MARIANO

Eu direi o teu nome, ó minha Mãe, às águas livres
Do rio que me acalentava a infância inquieta:
E o rio aumentará o volume das águas
Que os rios também choram quando sofrem.

Eu direi o teu nome às ruínas da nossa casa
Onde espalhaste o bem da tua misericórdia:
E ouvirei repetida em cada pedra do caminho
A aleluia cristã do teu nome sonoro.

Eu direi o teu nome à igreja humilde e pequenina
Do nosso bairro pobre e o sino compassado
Teu nome levará além do céu sem raias
Nas asas ágeis das andorinhas viajeiras.

Eu direi o teu nome às barcaças que levavam
Os pretos cativos e do fundo delas
Surgirão, um a um, os vultos desgraçados
Arrastando-se de joelhos para beijar-me as mãos.
  
Eu direi o teu nome às árvores, às casas,
A tudo que deu alma e vida e sonho à nossa vida:
E quando voltar, sentirei minh'alma aliviada
Do peso dessa dor que vem da tua falta.