sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

WENCESLAU QUEIROZ - REVELAÇÃO


    

REVELAÇÃO

WENCESLAU QUEIROZ

Nada te digo nem direi... Mas penso
que o  meu olhar, quando em teus olhos pousa,
te revela em segredo alguma cousa,
alguma cousa deste amor imenso...

Minha boca - bem vês - como uma lousa
é muda, embora num desejo intenso
arda meu coração como um incenso,
envolto no mistério em que repousa...

Que outros proclamem seu amor em frases
de fogo, alçando a voz enternecida,
cheios de gestos e expressões falazes...

Eu, não... Nada te disse nem te digo...
Mas sabes que este amor é minha vida
e que em silêncio morrerá comigo...

   

NEL CÂNDIDO - QUANDO PEQUENO...




QUANDO PEQUENO...

NEL CÂNDIDO

Quando pequeno nada fui além de uma criança comum.
Estudante, fui descobrindo as possibilidades da vida e do mundo.
Jovem, aprendi a sonhar em mudar o mundo e marcar meu lugar na história.
Trabalhando, deparei-me com a realidade, mesclada de alegrias e frustrações.
Maduro, passei a vislumbrar a finitude.
Hoje encontro-me simplesmente cansado.

CARLOS DRUMOND DE ANDRADE - RESÍDUO


 

RESÍDUO

CARLOS DRUMOND DE ANDRADE

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido 
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidro de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e  sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

ALDA LARA - MUTILAÇÃO




MUTILAÇÃO

ALDA LARA

meu corpo, lancei-o ao mar,
para que o mar o levasse,
e matasse aos peixes belos,
a fome dos meus anelos...

meu olhos, joguei-os longe!
atirei-os às estrelas solitárias
de uma noite...

doei meus lábios vermelhos
à criança prostituída...
mais! entreguei os meus nervos
aos violinos da vida...

e daqueles longos cabelos,
fiz agasalhos de tiras,
com que embrulhei, ressequido
os troncos das árvores velhas...

hoje p'ra além do meu cansaço,
só me resta o coração,
que continua a bater 
transfigurado, no espaço!

JOSÉ MARIA ALVES - DESÇO AO MEU INFERNO


                    

DESÇO AO MEU INFERNO

JOSÉ MARIA ALVES

desço ao meu inferno
baía da meia-lua onde as folhas das faias murmuram
estrelas nas entranhas rasgadas pela espada do amante visionário

o mensageiro que os deuses enviaram na beleza da mulher       palavra 
mágica em canção incompleta

quem não sabe amar não merece viver

a trova de um grilo na doçura de outrora
uma víbora assobia no monte farvão
no mosteiro amontoam-se mágoas       sempre que uma folha cai do
plátano no pátio enegrecido deus chora

mãos invisíveis tocam os meus parcos cabelos
e eu adormeço
sem pensar se vale a pena ou não acordar mais logo

                    



LIBERDADE

JORGE REBELO

Liberdade,
tu hás de chegar um dia
eu sei.
Se vieres tarde,
para além do meu tempo de luta 
            e de conquista,
não te esqueças
que eu te amei
            universalmente
e te busquei sem desânimo
durante toda a minha 
             ignota
                         permanência.
Detém-te pois um instante
à beira do meu túmulo:
morto embora, eu saberei sentir-te
e conhecer-te
e remorrer
            então
                         tranquilamente.