UM DIA... MÁRIO QUINTANA Um dia descobrimos que beijar uma pessoa para esquecer outra é bobagem. Você não só não esquece a outra pessoa como pensa muito mais nela... Um dia nós percebemos que as mulheres têm instinto "caçador" e fazem qualquer homem sofrer... Um dia descobrimos que se apaixonar é inevitável... Um dia percebemos que as melhores provas de amor são as mais simples... Um dia percebemos que o comum não nos atrai... Um dia saberemos que ser classificado como "bonzinho" não é bom... Um dia perceberemos que a pessoa que nunca te liga é a que mais pensa em você... Um dia saberemos a importância da frase: "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas..." Um dia percebemos que somos muito importante para alguém, mas não damos valor a isso... Um dia percebemos como aquele amigo faz falta, mas aí já é tarde demais... Enfim... Um dia descobrimos que apesar de viver quase um século esse tempo todo não é suficiente para realizarmos todos os nossos sonhos, para beijarmos todas as bocas que nos atraem, para dizer o que tem de ser dito... O jeito é: ou nos conformamos com a falta de algumas coisas na nossa vida ou lutamos para realizar todas as nossas loucuras... Quem não compreende um olhar tampouco compreenderá uma longa explicação.
INTIMIDADE FERNANDO NAMORA Que ninguém hoje me diga nada. Que ninguém venha abrir a minha mágoa, esta dor sem nome que eu desconheço donde vem e o que me diz. É mágoa. Talvez seja um começo de amor. Talvez, de novo, a dor e a euforia de ter vindo ao mundo. Pode ser tudo isso, ou nada disso. Mas não afirmo. As palavras viriam revelar-me tudo. E eu prefiro esta angústia de não saber de quê.
RECEITA PARA FAZER UM HERÓI REINALDO FERREIRA Tome-se um homem, Feito de nada, como nós, E em tamanho natural. Embeba-se-lhe a carne, Lentamente, Duma certeza aguda, irracional, Intensa como o ódio ou como a fome. Depois, perto do fim, Agite-se um pendão E toque-se um clarim. Serve-se morto.
PASSAMOS PELAS COISAS SEM AS VER EUGÉNIO DE ANDRADE Passamos pelas coisas sem as ver, gastos, como animais envelhecidos: se alguém chama por nós não respondemos, se alguém nos pede amor não estremecemos, como frutos de sombra sem sabor, vamos caindo ao chão, apodrecidos.
CAMINHEMOS MÚSICA DE HERIVELTO MARTINS CANTA: SERGIO LIMA Não, eu não posso lembrar que te amei Não, eu preciso esquecer que sofri Faça de conta que o tempo passou E que tudo entre nós terminou E que a vida não continuou pra nós dois Caminhemos, talvez nos vejamos depois Vida comprida, estrada alongada Parto à procura de alguém Ou a procura de nada... Vou indo, caminhando Sem saber onde chegar Quem sabe na volta Te encontre no mesmo lugar
QUE DEUS GUARDE MEU PAI ANTONIO BRASILEIRO Não passar. Ficar para semente. Não era isso que meu pai queria? Sentava-se na rede e adormecia julgando ter domado a dama ausente. E sonhava talvez. Talvez menino montando burros bravos, nu, ao vento; um homem é sua ação sobre o destino. Meu pai então fazia um movimento e a rede, a adormecer, estremecia: pequenos sustos no tempo, era só isto. E escancarava os olhos duramente, para mostrar que se Ela o procurava era de cara a cara que a encarava. Que Deus guarde meu pai. Eternamente.
SÚPLICA MIGUEL TORGA Agora que o silêncio é um mar sem ondas, E que nele posso navegar sem rumo, Não respondas Às urgentes perguntas Que te fiz. Deixa-me ser feliz Assim, Já tão longe de ti como de mim. Perde-se a vida, a desejá-la tanto. Só soubemos sofrer, enquanto O nosso amor Durou. Mas o tempo passou, Há calmaria... Não perturbes a paz que me foi dada. Ouvir de novo a tua voz, seria Matar a sede com água salgada.
DIA INÚTIL, VAZIO... J. G. DE ARAÚJO JORGE Dia inútil, vazio... E a minha alma viúva do último sonho, envolta em crepe, em luto estranho. Aqui dentro encerrado, olho o tempo, e acompanho seu enterro que passa em silêncio na chuva... Vida! Bem que por ti muitas vezes me assanho! Num resto de perfume um gosto ativo de uva! No entanto, hoje este tédio que não tem tamanho meus sentidos calçando, assim como uma luva! Neste vago conforto, quase desconforto, os minutos iguais pingando a mesma voz na goteira irreal de algum relógio morto... E este dia, e esta chuva, e esta sala, e esta calma... E a inútil sensação de que me encontro a sós como o último parente a velar a própria alma!
ORAÇÃO NATURAL DONIZETE GALVÃO Fique atento ao ritmo, aos movimentos do peixe no anzol. Fique atento às falas das pessoas que só dizem o necessário. Fique atento aos sulcos de sal de sua face. Fique atento aos frutos tardios que pendem da memória. Fique atento às raízes que se trançam em seu coração. A atenção: forma natural de oração.
OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO CARLOS DRUMOND DE ANDRADE Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração. Tempo em que não se diz mais: meu amor. Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco. Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. Ficaste sozinho, a luz apagou-se, mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. És todo certeza, já não sabes sofrer. E nada esperas de teus amigos. Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança. As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação.
CONVENIÊNCIA CECÍLIA MEIRELES Convém que o sonho tenha margens de nuvens rápidas e os pássaros não se expliquem, e os velhos andem pelo sol, e os amantes chorem, beijando-se, por algum infanticídio.
Convém tudo isso, e muito mais, e muito mais... E por esse motivo aqui vou, como os papéis abertos que caem das janelas dos sobrados, tontamente... Depois das ruas, e dos trens, e dos navios, encontrarei casualmente a sala que afinal buscava, e o meu retrato, na parede, olhará para os olhos que levo. E encontrarei meu corpo nalguma cama dura e fria. (Os grilos da infância estarão cantando dentro da erva...) E eu pensarei: "Que bom! nem é preciso respirar!..."
MÃOS QUE OS LÍRIOS INVEJAM... ALPHONSUS DE GUIMARAENS
Mãos que os lírios invejam, mãos eleitas Para aliviar de Cristo os sofrimentos, Cujas veias azuis parecem feitas Da mesma essência astral dos olhos bentos: Mãos de sonho e de crença, mãos afeitas A guiar do moribundo os passos lentos, E em séculos de fé, rosas desfeitas Em hinos sobre as torres dos conventos. Mãos a bordar o santo Escapulário, Que revelastes para quem padece O inefável consolo do Rosário; Mãos ungidas no sangue da Coroa, Deixai tombar sobre a minha Alma em prece A benção que redime e que perdoa!